quinta-feira, maio 29, 2008

Apetite artístico

Eu prezo os artistas. Especialmente os mais genuínos, aqueles que usam boina. Talvez por isso vá aos sítios que eles frequentam para ter a oportunidade de inalar um pouco da sua criatividade e intelectualidade. Tento entrosar-me e aproveito para lançar umas frases previamente elaboradas com a intenção de aos poucos ir entrando no restrito círculo de intelectuais e artistas da região.
No último sábado, numa dessas incursões, fui ao Bar “Cachopa Arrebita!”. Brotava do interior do estabelecimento uma áurea de intelectualidade rochosa que quase me levou ao deslumbramento.
Era uma noite especial. Um tal de Ermelindo Sarrafas recitava uns textos do alto dum palanque instalado no lado oposto ao bar. Acompanhava-o outro indivíduo vestido num estilo “espantalho em campos de trigo” que retirava sons de percussão dum tijolo com um martelo. Do pequeno livro de nome “Bolinhos da Avozinha” o orador, com aquela garra dos declamadores, gritava frases duma beleza feroz como “junta-lhe duzentas e cinquenta gramas de margarina” ou “polvilhar com canela a teu gosto”. Sempre com o rufar do martelo a dar o mote.
O bar estava cheio. O olhar daquela gente brilhava como as estrelas, perdidos em sonhos de contos de fadas… deliciados.
Eu, enleado naquele ambiente, não conseguia entender a profundidade do momento. Sentia apenas uma coisa: uma irresistível vontade de comer um bolinho da Avozinha. Esperei o fim da actuação e dirigi-me ao artista declamador e perguntei:
- Boa noite. E então esses tais bolos de canela são mesmo bons? E são fáceis de fazer? Aconselha-os com um cafezinho ou com chá?
Não obtive resposta. O olhar de reprovação do sujeito trespassou-me como um gume de aço afiado. Virou-me as costas a abanar a cabeça. Fiquei irritado e não resisti a lançar uma farpa em voz alta antes de sair:
- Está bem oh guloso, fica com os bolinhos só para ti! Espero que te engasgues!

segunda-feira, maio 26, 2008

Bebe que isso passa!

“Não há mulheres feias… há é homens que bebem pouco!”. A afirmação do Licínio deixou-me um pouco perplexo. Confuso até. O cheiro a courato assado que empestava a sala também não ajudava a clarificar a mente. A ventilação do local era feita através dum buraco na parede provocado por um disparo de carabina. O velho Manecas, o Camões da Verderena, sempre gostou de praticar o tiro aos pratos nas tardes de Domingo. Ter Parkinson e um olho vesgo são, no entanto, claros entraves à pontaria afinada!
“Mas eu já bebi oito imperiais e continuo a achar que a moça não é propriamente a Miss Alhos Vedros”, respondeu o “Facadas”.
“Pois, bebeste pouco. Para uma tipa daquele “calibre” precisas no mínimo de 15 imperiais!”.
“Bem… eu também não estou aqui para ver mulheres bonitas. A Tasca do Azedo não é sítio para isso… reparem na nova empregada: tem um bigode maior do que o meu!”
“Sim… e esta está ao balcão, imagina as que trabalham no armazém!”
Estava na hora de alguém com um pingo de dignidade intervir. Começava a ficar revoltado com tamanha insensibilidade. Aquelas mulheres, por baixo das carcaças desleixadas, eram seres-humanos com sensibilidade e coração, merecedoras de respeito. Decidi falar.
“Oh senhores não sejam assim, vocês também são uma rica parelha de saguins, feios como uns bodes, e eu estou aqui a conversar convosco e a beber uns copos… quer dizer… beleza não é tudo.”
“Feios?! Achas que somos feios?”
“É pá… bonito é que tu não és!”
“Fogo Talk… então porquê? O que te leva a achar que eu, “Facadas” Canhoto, o Don Juan da Vinha das Pedras, não sou um tipo jeitoso? Vá… diz lá!”
“Não sei explicar “Facadas”… talvez seja dos dentes ao estilo “piano quase sem teclas brancas”, ou então são os pêlos do nariz que recordam toda aquela vegetação da Mata da Machada no início da Primavera, o facto é que há algo em ti que me diz que não serás propriamente um tipo atraente!”
“E eu Talk e eu?!”. Perguntou o Licínio Chispes.
“Bem… não sei o que te dizer…”
“Achas que ainda sou mais feioso que o “Facadas”?!”
“Não… quer dizer, creio que daqui a 6 ou 7 imperiais já não!”

quarta-feira, maio 21, 2008

Chácha Talk

Dois meses passados na Irlanda e finalmente temos o Crazy Charm de volta. O dia-a-dia da maior banda de charming punk rock do Mundo volta assim ao normal. Uma hora depois do combinado, aparece o gajo no café do Zeca com ar de “Não se passa nada”.
- Ena… estou a ver que trouxeste a pontualidade da Irlanda! - Disse-lhe eu.
- Trouxe trouxe… isso e um trevo de quatro folhas para te oferecer… só não achei foi um duende!
- Procuraste bem?! Diz-se que vivem nos campos verdejantes, debaixo das bostas de vaca!
- Pois aí não procurei… bostas é mais o teu pelouro! Vi foi uns tipos muito parecidos contigo pá!
- Ah sim?! Quer dizer que a Irlanda tem gajos giros?
- Não é bem isso… estive numa feira de História Natural, vi umas belas réplicas de hominídeos pré-históricos… isto é, em português que tu percebas, Macacões!
- Pois… disso percebes tu. Não é por acaso que vives numa gruta e comes raízes de árvores e insectos!
- Pois claro… de outra forma seria impossível dar-me contigo… em Roma sê romano, ou melhor, ao pé dum australopiteco sê um australopiteco.
- Sim, australopiteco mas da nobreza. Repara neste ar altivo!
- Sim sim… deves ser o Sir Pitecos!
- É… e tu és um Lorde Magnon!
Alguém na mesa ao lado intervém:
- Bem… vocês tratam-se muito bem!
- Somos como os miúdos – disse eu – Tratamo-nos mal porque somos amigos.
- Ah… está bem! – Respondeu o tipo não muito convencido.
- Não é oh gorila? – voltei à carga.
- É sim… saguim cabeçudo.
- Bem, deixemo-nos disso e vamos falar do que interessa – disse eu – falemos da Banda!
- Da Banda?! É pá isso não… isso é conversa de chácha. Para isso tinha ficado em casa a olhar para uma pintura rupestre e a beber um batido de carocha!

segunda-feira, maio 19, 2008

O fim do Mito – Parte II

Começava a ficar nervoso. A dita prova estava ali em cima da mesa. Um conjunto de folhas A4 presas em argolas com uma capa de plástico de cor alaranjada que dizia: “Guerreiros Niitsumy”. Vinha assinada por um conhecido jornalista de investigação que já tinha desmascarado entre outras a história das pegadas de dinossauro na Praia dos Tesos. Provou-se que Licínio Chispes tinha andado por lá durante uma apanha de lamejinhas. Mais uma vez o tamanho dos pés do Licínio a lançar a confusão.
Comecei a desfolhar o documento e quando dei por mim já estava a bordo duma nave espacial a caminho de Plutão. Tal como a nave do Pete, a minha também não era a Galáctica. Era mais uma espécie de queque gigante, mas em vidro, onde podia olhar tudo à minha volta!
“Então mas os Yetis não existem?!”, perguntei em pânico.
“Não… são ursos polares que viste provavelmente no jardim zoológico”. E de repente vi a Lua a ficar para trás no espelho retrovisor do queque voador.
“E o pardal do Mogodochi que às vezes me fala ao ouvido?!”.
“Imaginação Talk… já pensaste em escrever um livro… ou em ir ao médico?”. Ao olhar para Marte, conclui que afinal não é bem encarnado é mais para o bege.
“Mas… mas e eu já estive lá! Já estive no Tibete… eu, epá eu conheci o Mogodochi!”.
“Tens a certeza? Não estiveste antes na Serra da Estrela? E olha que velhos barbudos vestidos de túnica de seda amarela, com chapéu de cuco e que gostam de fazer sapateado é o que não falta por ai…”. Confirmo, Plutão não é um planeta… é uma bola de ténis, foi pena não me ter lembrado de trazer a raquete.
“Mas… mas eu sou um Guerreiro Niitsumy! Porra… confesso, eu sou um deles… como explicam isto hã?!”
“Ah pois é! Apanhado! Eh eh eh eh eh eh”. Queque de vidro colide com bola de ténis.
“Era isso que nós queríamos… que confessasses que eras um guerreiro Niitsumy! Nós andávamos desconfiados… aquele pardal sempre a poisar no teu ombro… a forma estranha como comes o arroz… tinhas que ser!”, disse o Panchito.
“Oh Pete… já viste isto… apanhado pá! Fogo, eu… apanhado!”.
“Hã!? Epá está calado senão os gambozinos ouvem-te e fogem!”.

quinta-feira, maio 15, 2008

O fim do Mito – Parte I

Pete, o Dartanhã do Petisco, já me tinha avisado: “Olha que os brócolos não combinam com sumo de ananás, costumam dar azia… ou isso ou então ficas num estado tal que tens a sensação que entras numa viagem. Quando deres por ti estás a apanhar gambozinos, pela tardinha, numa lua de Saturno. Eu sei. Eu já lá estive”.
Não sei se foram os brócolos ou se são efeitos retardados daquela couve voadora, que extraviada, me atingiu durante uma performance num concerto do Patanisca Tour, mas a verdade é que nestes últimos tempos dei por mim a viajar para muito longe.
Sempre me considerei um tipo racional. Racional ao ponto de pôr em causa a origem de Mogodochi, líder Supremo dos Guerreiros Niitsumy! Não pensem que foi à primeira que me convenceram que o homem tinha nascido duma semente de girassol! Não. Só depois de confirmar que o “Guerreiro Velhote” está sempre virado de frente para o Astro Rei, é que dei a mão à palmatória e acreditei.
“Vá Talk, só para acalmares senta-te ai e vê isto”. Com estas palavras Panchito deu inicio à histórica derrocada do Mito: Talk Talk o Guru da Percepção!
Seguindo a ordem de Panchito sentei-me ao lado de Pete, o tal que me tinha avisado dos brócolos, que por aquela altura já levantara voo a caminho dum planeta distante.
“Então Pete tudo fixe, o que é que esta rapaziada me vai fazer?”
“Já vez já vez… epá agora não posso dar-te atenção porque vou entrar numa chuva de meteoritos e este calhambeque não é propriamente a nave espacial Galáctica!”
“Comeste brócolos e bebeste sumo de ananás não foi?!”. Não me respondeu.
Panchito também se sentou e disse: “Agora a minha irmã e a Franceska tratam do resto…”
Panchita e Franceska tinham aquele ar de quem era capaz de vender rifas para ajudar os necessitados e até ao mais forreta dos tipos venderiam um bloco inteiro!
“Talk vamos provar-te que os Guerreiros Niitsumy são fruto da tua imaginação, que eles nunca existiram”, disse a Panchita.
“Como?!” respondi eu. “Ah ah ah ah ah ah… ah!”. “ E a seguir provam-me que o Peru das Neves não tem melhor voz que o Júlio Iglésias!”.
“Hum… também pode ser… acreditas mesmo que um Peru consegue cantar?!” Perguntou a Franceska.
Por momentos pensei: “Será que a porra do Peru me mentiu e faz playback?”
(Continua)