sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Maré-cheia – Reedição

A uma maré-vazia sucede-se uma maré-cheia. O rio tem os seus ciclos, tal como a vida. É bom ver os lodos cobertos pelo prateado do Tejo, ouvir o chapinhar das tainhas, cheirar a maresia trazida pelos ventos do norte. É para esses momentos que vivo. É neles que me inspiro.
Partir pela manhã na minha herdada barcaça, na subida da maré, indo até à Ilha do Rato, é um ritual que sigo desde que me lembro de existir. Comecei esta romaria com o meu Avô, o saudoso “Custou” Caxias. A alcunha provém das semelhanças físicas e de hábitos com o velho lobo-do-mar francês. O meu avô era um homem fantástico, com uma cultura alicerçada nas horas passadas a jogar à bisca lambida com outros marinheiros, com um charme capaz de derreter uma estátua de bronze, com um sentido de humor capaz de fazer chorar a rir um tronco dum chaparro ressequido pelo Sol. Para além de marinheiro e estudioso do mar foi também um grande mecenas, tendo criado a famosa e tantas vezes incompreendida Fundação Caxias.
A Fundação, com sede na Tasca do Azedo, tem a responsabilidade cívica de apoiar jovens com valor, nomeadamente jogadores de dominó, do chinquilho, futebolistas, poetas, músicos e todos aqueles que de alguma forma desejam viver da sua arte. Os tipos de apoio variam consoante a qualidade e experiência a nível artístico, podendo ir desde a motivante palmadinha nas costas até à entrega duma bolsa mensal. A bolsa pode alternar entre o azul-bebé, o rosa choque e o preto e tem fecho éclair. Contém várias coisas no seu interior como uma malha, canetas Bic (laranja e cristal), um baralho de cartas, dois bilhetes de autocarro dos Colectivos do Barreiro, saquetas de Ultra-levur e um after-shave da loja dos trezentos.
Agora vou porque o tempo escoa. A Ilha do Rato espera-me para lá deste mar-chão. Voltarei na descida da maré, isto se o casco decidir que ainda não é hoje que se rende à investida do rio ou se, como diz a lenda, a Ninfa me raptar e me mantiver cativo (contra a minha vontade, claro) nos areais da Ilha. Se esta última coisa me acontecer não se incomodem a pedir ajuda, eu cá me hei-de desenrascar!

1 comentário:

P. Guerreiro disse...

Que bela história dava o teu tio...Mesmo que esse teu tio exista só na tua cabeça. Certo é que começei por ler muito a sério e acabei a rir. Seja como for despertaste uma personagem.

Um abraço para ti, naúfrago das ninfas do Tejo (Ou de qualquer outro rio).