segunda-feira, outubro 30, 2006

A história de Rocky – Parte V

O pavilhão da C+S do Bairro Alentejano estava ao rubro. Adeptos do boxe de todas as idades, levados pela curiosidade tinham preenchido por completo as bancadas de madeira que rodeavam o ringue.
No balneário, Rocky Beiças suspirava de ansiedade enquanto Chelas lhe calçava as luvas e lhe ia transmitindo as últimas dicas para o combate:
- Ele é duro como uma rocha. Mas tu és forte como um camião TIR carregado de abóboras do Cartaxo. Dá-lhe com a esquerda, uma, duas, três vezes e depois… pimba… forte com a direita…
Um dos organizadores do evento chegou-se à porta e chamou Rocky. Estava na hora!
Calmamente, Rocky percorreu o corredor de acesso ao recinto. Sentiu o carinho do público quando já no pavilhão se dirigia para o ringue. O seu adversário já lá estava. Era colossal. Inerte… com ar impressionantemente feroz fitava o Yeti tosquiado com desprezo. Rocky entrou no ringue e elevou os braços provocando um impressionante empolgamento da parte da audiência.
- Rocky Beiças! Rocky Beiças! – Gritavam em uníssono.
O apresentador de serviço era Licínio Chispes, um habituait nestas andanças. Após pedir o microfone e o mesmo lhe ter sido fornecido começou a apresentação:
- Som… som…1,2…1,2,3…olha que coisa mais linda é ela que passa… 1,2…1,2,3… cheira bem., cheira a Lisboa. Bom… vejo que o micro está em condições. Boa noite minhas senhoras e meus senhores. Esta noite temos um combate portentoso entre dois gigantes. Á minha esquerda, de calções amarelos, pesando 180 quilos, com 2,30 metros de altura, vindo não sei de onde e em estreia absoluta em ringue… Rocky Beiças. Á minha direita, com 30 combates, sem derrotas, revestido a cortiça, pesando algo mais do que a capacidade da balança, com 4 metros de altura, vindo do chaparral do Teves… Zé Sobreiro.
Ao soar da campainha começou a contenda. Zé Sobreiro era de facto muito lento, nunca conseguiu infringir qualquer golpe a Beiças. Mas não era fácil pregar com ele no chão. As raízes eram profundas, a grossura do tronco era descomunal. A agilidade de pés e a direita em gancho de Rocky Beiças acabou por fazer estragos no início do 4º assalto. Sobreiro caiu e não reagiu à contagem do árbitro.
Apesar da multa por abatimento de árvores, a carreira de Rocky Beiças começava da melhor maneira.

terça-feira, outubro 17, 2006

A história de Rocky – Parte IV

- ARHHHHHHHHRRRRRRRRRRRRRR RURURURUHHHHHH
Rocky bem protestou, mas não havia muito a fazer. Rapar o pêlo branco era a única solução para fazer com que parecesse mais humano. Sentado num cadeirão bem preso com amarras, no centro do ringue de treino, o yeti aguardava inquieto a chegada de Zé Pastor, homem habituado à labuta da tosquia de ovelhas. Quatro horas depois estava terminada a tarefa. Restava apenas limpar e levar a vazadouro a enorme quantidade de penugem tosquiada. “Cabeças”, pescador do rio Tejo que contribuiu com o fornecimento dos cabos que amarraram Rocky, disponibilizou-se para ficar com o pêlo: “deixem estar que eu trato disso, a minha Maria é capaz de me fazer um gorro para eu levar para o mar no Inverno, se não houver material suficiente para isso aproveita-se o que há e faz-se um belo cobertor”.
No dia seguinte Rocky surgiu no ginásio. Nasce então o mito dentro do próprio mito. Ninguém, exceptuando Chelas que tinha engendrado o plano, reconheceu Rocky. A perplexidade tomou conta de todos aqueles que o olhavam… quem seria?
- É… o … ehhh Beiças – Disse Chelas reparando na espessura dos lábios do yeti que agora se desvendavam na sua plenitude. – É o grande Rocky Beiças. Vem do estrangeiro para ser o nosso campeão!!!
Começou assim o mistério em torno das suas origens. Havia quem garantisse que se tratava dum gigante albino proveniente das selvas do Congo, havia quem jurasse a pés juntos tê-lo visto num filme documentário da ex-URSS onde aparecera como mineiro nas grutas de prata do Kazaquistão.
Rocky Beiças ignorou todos os boatos. Estava preparado para se tornar no maior lutador de todos os tempos da história do pugilismo da região! Mas primeiro teria que enfrentar um dos mais temíveis lutadores que já pisaram os ringues.

sexta-feira, outubro 13, 2006

A história de Rocky – Parte III

Lino Chelas era um tipo com sorte. Calhava sempre estar no lugar certo à hora certa, ou por outro lado, a evitar o lugar errado na hora errada. Até no dia em que acabou para o boxe, essa sina o acompanhou. O tareão que levou do Ulisses Melro deixou-o em coma, então já não foi ter com a amante, como era hábito fazê-lo após os combates. O marido cornudo, aguardava-o à esquina com uma caçadeira pronta a rebentar-lhe com os miolos. Chelas acabou por não aparecer, uma vez que passou essa noite (e as 130 subsequentes) no Hospital de São José.
No sítio certo à hora certa, Lino Chelas observou o espancamento de Rocky aos malfeitores. Regressava da fisioterapia e era comum passar por ali, embora a hora diferente. Um copo 3 na Taberna do Silva e uma “regadela às azeitonas” nos canaviais junto à linha do comboio tinham feito que se atrasasse cerca de 30 minutos.
Ficou estupefacto. Viu ali um potencial pugilista, capaz de dominar o boxe na categoria de pesos pesados. Precisava apenas duns retoques. Quando o viu mais calmo, aproximou-se e meteu conversa:
- Olá jovem. Já ouviste falar no Ginásio do Chelas? Ensinamos boxe ao pessoal… acho que eras capaz de ter jeito para a coisa, estás interessado?
- LUTAR NÃO. LUTAR NÃO – Articulou Rocky de forma rude.
- Mas não é uma luta rapaz… é um desporto, é bom para a saúde. Não ouves o que dizem os médicos pá?
- DESPORTO? AHHRHHRHRHR RHRHRURURURURUR. SIM. BOXE DESPORTO ENTÃO SIM!
Na manhã seguinte lá estava Rocky no ginásio. Vinha vestido a preceito. Fita na cabeça, calções pretos, camisa de manga cava que de tão curta lhe dava pelo meio do tronco, deixando a pelugem da barriga ao léu.
Sem grandes demoras Chelas começou a treinar o seu futuro campeão. Ensinou-lhe a filosofia do pugilismo, os golpes, os gestos. Aos poucos Rocky ia-se tornando numa verdadeira máquina de guerra. Pronto a golpear sem piedade os adversários mais temíveis. Só havia um problema: como inscrever um Yeti numa modalidade que somente aos seres-humanos era permitida?

sexta-feira, outubro 06, 2006

A história de Rocky – Parte II

Foi numa bela manhã de Verão que Lubomir Rocky desembarcou pela primeira vez na Portela. Que estranha visão tiveram todos aqueles que o observaram!! Causou grande frisson. Embora habituados aos estranhos craques de futebol que chegavam às resmas para alimentar os plantéis dos clubes da cidade, isto era absolutamente novo. Dois metros e trinta num corpo rijo e descomunalmente largo, coberto de pelugem branca. A trouxa de pano preto, o chapéuzinho e o papillon vermelho completavam o ramalhete. A noção de excêntrico adquirira agora uma nova amplitude.
Lubomir pouco lhes ligou. Foi à sua vida. A pé porque nunca tinha visto um táxi na vida e também não falava a língua para explicar onde queria ir. Arranjou um quarto na Margem Sul do Tejo e tratou de procurar emprego. Deambulou entre trabalhos variados como ajudante de cozinha, figurante em teatro de revista, espectador de TV, vendedor em loja de lingerie feminina.
Foi durante a sua estadia nessa mesma loja que a sua vida mudou. A dona do estabelecimento, Erica Soraia tinha por ele um carinho especial. “Meu gigante felpudo”, dizia-lhe ela, “Fazes-me lembrar um meu ex-marido. Só vejo duas diferenças entre vocês: os pêlos dele eram pretos e tu consegues articular mais palavras numa frase”. Lubomir sentia-se orgulhoso, as aulas de português começavam a sortir efeito. Já conseguia pronunciar o seu nome e dizer “Bom-dia” sem grunhir!!
Mas não foi por isso que a sua vida mudou. Erica convenceu-o a tirar um curso de pintura de azulejo, em horário pós-laboral. Ele adorou a ideia. Estava entusiasmado. Segundo o que diziam tinha nascido para aquilo. Pintava com ardor e criatividade. Aquela tarefa realizava-o em pleno.
No entanto, numa 5ª feira à noite quando saía da aula, descobriu a sua outra vocação. O famoso Bando dos Calvos, do Vale da Amoreira, interpelou-o tentando um assalto. Eram 17 indivíduos, munidos de armas como colheres de pau, piaçás, cabos de vassoura. “Olha que o gajo é bué da grande!!”, lembrou um dos malfeitores. “Qual é o problema? É grande mas para andar num curso de gajas é por que não é grande coisa”, referiu o líder, gritando de imediato um “a ele que é maricas”.
Rocky não era violento. Mas quando se viu no chão, com 17 mamíferos sobre ele a espancá-lo reagiu. Um safanão e dois murros depois o bando estava KO. O lado animalesco de Rocky veio à superfície quando grunhiu e bateu vezes sem conta com os punhos no peito. Começara um nova era para Rocky.

terça-feira, outubro 03, 2006

A história de Rocky – Parte I

Mochachucha é uma aldeia yeti igual a tantas outras. Cosmopolita, sobrevive muito à custa do comércio de dentes de leite e também graças ao célebre cuspe yetino, que produz uma substância aquosa muito utilizada na indústria de pasta de dentes e de líquidos para conservar placas dentífricas.
Lubomir Rocky passava o tempo entre o consultório do Dentista, permitindo o ganha pão aos pais e a escola, onde aprendia entre outras coisas que “Guerreiros Niitsumy” significava amigos e “Bandochi” significava badamecos com a mania que sabem tosquiar yetis mas que existem apenas para levar grandes coças destes.
Acontece que certo dia, enquanto estava deitado na cadeira do dentista, sentiu o seu primeiro dissabor que marcaria a sua vida para sempre. “Lubo há algo que deves saber”, começou por dizer-lhe com voz pausada o Doutor, “não posso arrancar-te mais dente nenhum. Primeiro porque não tens mais nenhum para arrancar, depois porque isso significa uma coisa: Esta última dentição que apareceu já não era a de leite!!”.
“Mas doutor como é que é possível, nascem sempre 20 a 22 dentições de leite nos jovens yetis, o Lubomir só ainda vai na sétima!!”, exclamou a mãe quase em choque.
Após se afastarem do moçoilo, de modo a que ele não se apercebesse da conversa o Doutor disse: “Minha senhora, ainda não reparou que o seu filho é baixo de mais para a idade?, não acha estranho o jovem ter quase 13 anos e ter apenas 2 metros de altura?”. “O que é que me está a querer dizer?”, perguntou a mãe aterrorizada. “O Lubo não é um Yeti de raça comum, ele é um Yeti anão!”, concluiu o Doutor.
O mundo daquela senhora desabou naquele momento. Lembrou-se das aventuras que teve no passado. O marido passava muito tempo fora e … os yetis de raça anã têm determinado tipo de fama capaz de provocar atitudes mais tresloucadas em jovens desconsoladas.
Tenha sido pela dor de corno ou simplesmente pelo facto da “máquina de marfim” ter esgotado a sua produção, o jovem Lubomir foi abandonado pelos pais. Lá partiu confuso, sem rumo, pelas montanhas até chegar ao país dos famosos Guerreiros Niitsumy.
Aí, acarinhado por outros yetis e não só, cresceu até se tornar um adulto forte e bondoso. Por ali poderia ter ficado o resto de seus dias, mas ele queria algo mais. Uma aventura epopeica o aguardava no outro lado do oceano.